30 de março de 2011

DETRÁS DE UM BOM TORCEDOR HÁ SEMPRE UMA BOA MULHER

Por Felipe Bigliazzi


Detrás de um bom torcedor há sempre uma boa mulher. A frase escrita por Paulo Coelho, Chico Buaque, ou qualquer outro vencedor do premio Jabuti, pôde ser vivida na pele por este contista. Eis que em pleno domingo porteño tivemos que abreviar o corajoso passeio pelo bairro de La Boca - vestido com a camiseta celeste e branca em pleno território bostero - por um mais do que nobre motivo: Racing e Estudiantes disputavam a ponta do Torneio Clausura em um jogo, que a priori, apresentava ingredientes picantes.


O relógio marcava 4:15, 4:30, 4:40...não lembro ao certo. Alertei a pequena que precisávamos voltar ao centro, degustar uma pizza de mussa e partir rumo a Avellaneda. Apesar de um pequeno fastidio, Lili, incondicional como sempre, rumou em comunhão até a sucursal da Ugis - localizada entre a linda Avenida de Mayo e a não menos charmosa 9 de Julio. Degustamos 3/4 da baratíssima pizza a la piedra - por 12 pesos, o equivalente a 5 reais - partindo com certo apuro para tomar o ônibus 100. Logo ao chegar ao ponto, pudemos ver uma boa quantidade de torcedores do Racing. Apesar do atraso, os hinchas adentravam ao coletivo de forma cordial. No entanto, o motorista, em uma mistura de cinismo e má vontade, ameaçou deixar a toda coletividade racinguista no estádio do rival Independiente.


Nem bem Lili depositava os dois pesos e cinqüenta centavos no cobrador mecânico, quando um educado mexicano nos acercou perguntando a respeito da disponibilidade de ingressos. Contamos nossa saga, quando dois dias antes, ao chegar a Avellaneda para adquirir as entradas, nos deparamos com uma massa de peronistas e servidores públicos - pró- Cristina Kirchner - caminhando rumo ao estádio do Independiente afim de presenciar o comício da atual presidente.Leonardo, fanático torcedor das Chivas de Guadalajara, vagava a dias pela Argentina como um fervoroso turista futebolístico. Já havia visto o River Plate frente ao Arsenal em Sarandí, assim como na rodada anterior, ao Independiente em Avellaneda contra o Newell's Old Boys.


Junto ao azteca estava o seu colega Jordi. Catalão, e obviamente, culé honorário, perguntava-me sobre a geopolítica do futebol brasileiro. "Quem é o clássico rival do São Paulo?". O Grêmio é do sul do país, não é mesmo?. Aos poucos a paixão em comum pelo time da Catalunya foram tomando conta. A empolgação ao falar de Xavi, Iniesta, Guardiola, Messi... nos fez perder de vista o trajeto do ônibus .Eis que sucedeu o temiamos: a confirmaçao da ameaça. Aquele hijodemilputas, disfarçado de motorista, desviou do Cilindro de Avellaneda nos deixando a quase 1 km do estádio.


Lili, como uma grande mulher, não reclamou de nossa desatenção, tampouco da interminável - logicamente para ela - charla futeboleira entre aqueles três amantes do esporte bretão. Ao chegar ao estádio, Jordi e Leonardo, foram em busca de suas respectivas entradas, enquanto a bela Lili e este singelo contista, entraram na superlotada arquibancada inferior do Juan Domingo Perón. Logo ao entrar, o desespero foi total. Olhávamos um para o outro, não acreditávamos. Haviamos gasto 180 pesos para ver apenas a careca lustrosa de Juan Sebastián Verón? O meu Racing era líder, estava jogando bem, e tinha pela frente o atual campeão argentino.Era o suprasumo da viagem.


No entanto, este contista quando em Buenos Aires costume incorporar a alma tangueira, e como um bom aprendiz gardeliano, abdicou do último degrau com vista para o campo. Em troca: a proteção de Lili. O time local entra em campo, e a festa é de arrepiar pentelho de cadáver de qualquer IML que se preze. Após a tradicional chuva de papel picado, a Guardia Imperial - como se denomina a barrabrava do Racing - exibe sob nós, um imenso bandeirão de não menos de 100 metros.


O jogo começa e não há o que festejar. Segurando em seus delicados braços, pendurava-me entre os privilegiados que dominavam o último e cobiçado degrau do portão 12. Pelos gritos, aplausos e certo entusiasmo, pudemos enfim ter uma boa notícia: o Racing era superior e el Demonio Hauche já havia criado duas situações de razoável perigo a meta defendida por Agustín Orión. Porém, Paulo Coelho, Chico Buarque, ou qualquer outro vencedor do prêmio Jabuti tem sempre a razão. Não cabem dúvidas: a melhor companheira de estádio é uma boa mulher.


O fato é que graças aos empurrões de Lili, consegui me equilibrar, roubar 20 ou 30 cm do último degrau e assim, pude avistar o jogo com a ponta dos pés. Já corriam 12 minutos e o Estudiantes já havia conseguido conter o ímpeto inicial do Racing. Os comandados de Toto Berizzo, ao melhor estilo de seu mestre - Marcelo Bielsa - pressionava o Racing em seu campo, com Iberbia e Gabriel Mercado combatendo os avanços laterais de Ivan Pillud e Lucas Licht. Enquanto isso, os inoxidáveis - Verón e Chapu Braña - apelavam ao vigor para controlar Claudio Yacob e Pato Toranzo.


O treinador pincharrata, sagazmente, pediu para que Enzo Perez rodasse pelo lado direito afim de confundir a marcação de Claudio Yacob e Lucas Licht. Aos poucos o cotejo ficou a feição do Estudiantes. Acostumado com jogos decisivos, os experientes volantes do time de La Plata fizeram com que o cortejo se transformasse em uma batalha de meio campo. Os lances de gol eram nulos, tanto que a dupla de atacantes formada por Hernán Rodrigo Lopez e Leandro González, assistia a partida de um setor vip do campo.


Contudo, o atual campeão argentino conseguiu um par de faltas da entrada da área - perigo latente para qualquer rival, tendo em o talento incomum de La Brujita Verón ao bater na bola. O Racing vivia de meros lampejos de Gabriel Hauche. O ex- Argentinos Juniors era a única peça ofensiva a vencer o seu duelo, no caso, pelo flanco esquerdo, contra o canhoto Facundo Roncaglia. A Guardia imperial alentava. Os jogadores pressionavam, mas as chances de gol eram nulas. O matreiro Estudiantes de La Plata, tocava e tocava, esfriando o afã racinguista. E assim, com a redonda nos pés de Verón, se foi o primeiro tempo. Lili agradeceu.Suas mãos cansadas de me empurrar, latiam de dor – assim como a minha rígida panturrilha.


No intervalo, mesmo com nossas bexigas gritando e pressionando a uretra, guardamos posição. Merecíamos ou não menos ver a etapa final? Conquistamos dois ou três degraus, e assim, o lindo campo do Cilindro pode ser contemplado. Na volta ao gramado, a Guardia Imperial protagonizou algumas cenas insólitas. Aos gritos de "Vamo Academia, que tenemos que ganar. Esta hinchada, no te deja de alentar", os comandados de Miguel Ángel Russo voltaram para a etapa final com uma postura mais agressiva. Adiantaram suas linhas, deixaram a bola e os 11 pincharratas dentro de seu campo. O rosto de Lili me dizia que finalmente, estava mais do que me acompanhado naquele programa inusitado. Enfim, Lili desfrutava do delírio coletivo.

A vibração do estádio era contagiante. Teófilo Gutierrez, que passara todo o primeiro tempo isolado, estava afim de jogo, pedindo bola e marcando a saída de bola. El Payaso Lugüercio, outra figura apagada até então, se fixou pela extrema direita e assim o Racing voltava a vestir o traje de líder, suplicando protagonismo. Trocavamos olhares, caricias. Lili se movia, olhinhos ao céu. A protegia, guardava o seu atributo vital com um abraço tipicamente placentero. Não havia outra forma de evitar o empurra-espurra e os desrespeitos de plantão. Antes disso, pudemos cantar junto as demais 41.998 almas:” Vamo Vamo Acade!Vamo Acade! Vamooooooooo La Acade”. Creio que se passaram dois ou três minutos, e a canção seguia intensamente em nosso imaginário.


Neste meio tempo, Verón foi hostilizado bem de front para aquele casal brazuca. Foram 30 segundos, nada mais do que isso. Tempo suficiente para que conseguissemos nos juntar ao coro e insultar o grande maestro argentino. “Verón puto. La Concha de tu madre!”. Justamente Verón, travava naquela partida o duelo chave pelo domínio do meio de campo. Peito estufado, e elegância de um clássico meia argentino dos anos 60, Claudio Yacob era a aduana migratória da celeste e branca: tudo passava por ele. Verón grudou em Yacob, e o confronto ficou atraente. Dos 10 aos 20 minutos, o volante do Racing se transvestiu de brujita, comandando a Academia rumo aos seus melhores momentos.


Aos 15 minutos, após intermináveis e precisos passes, Yacob encontrou Teó Gutierrez. O goleador cafeteiro dominou com o peito, deixou a redonda cair e de forma apoteótica desferiu um lindo voleio: gol e avalanche na arquibancada local. Lili ficou assustada, imaginando o perigo da ação. Aguerrei a mineira pelo quadril, preparando os efeitos do tradicional festejo da Guardia Imperial. Eis que erroneamente, o bandeirinha não percebeu que Leandro Desábato dava condição ao colombiano, e assim, o zero permaneceu no placar.


No meio de semana, o Estudiantes havia goleado o Guaraní pela Libertadores, e o cansaço era latente. O León platense se limitava a esfriar o jogo com faltas táticas.Tanto que Leandro Desábato e Rodrigo Braña escaparam do cartão vermelho graças a complacência do glorioso referí. Nos minutos finais, somada a imprecisão nos passes e toda inteligência do Estudiantes, o Racing perdeu o controle e a visão do gol defendido por Orión. Aquela altura, pensávamos que o empate não era um mal resultado. Seguíamos na ponta, empatando com o último campeão argentino e um calendário totalmente a favor nas últimas treze rodadas.


Eis que aos 39 minutos, Licht tenta a ligação direta para o ataque. Mercado, no carrinho, consegue cortar. Verón, sem titubear, abre para Enzo Perez. Dale contra-ataque. O talentoso meia pincharrata, dá um passe curto, Pablo Barrientos e Franco Zuculini - ambós recém ingressados aos campo de jogo – dividem, e singelamente, como em um filme de seção da tarde, a bola decide ficar nos pés de Hernán Rodrigo Lopez. O atacante uruguaio, que havia passado a tarde toda perdido entre o trio de zagueiros do Racing, domina, vê a Jorge De Oliveira um pouco adiantado, e coloca a redonda bem ali. A Exquisita vaselina - como os argentinos definem o toque por baixo da bola que encobre os goleiros - paralisou todo o Cilindro: festa vermelha e branca e um injusto 0 a 1.


Raiva, impotência, novamente olhares ao céu. Será possível? Assim é o Racing, deu vontade de dizer a ela. Após o jogo, sentados em um famoso café do centro porteño, a doce mineira me confessou que teve vontade de esganar o provocativo goleador, quando o mesmo fez questão de passar na frente da Guardia Imperial com um sorriso irônico e o punho em riste. Com o apito final, surgiu a realidade para todos: a liderança havia escapado. O Racing seguirá com chances de sair do jejum. No entanto, terá de lutar contra esta triste sina perdedora dos últimos anos. Lili, ainda me pediu um colar barato pintado em celeste e branco - Vamo Acade!. Rumo a avenina Mitre, afim de tomar o coletivo de volta ao centro da capital, pude constatar que Lili já era um pouco racinguista. Mais do que isso, Lili me demonstrou que detrás de um bom torcedor há sempre uma boa mulher.